Policiais podem investigar policiais?

Os Delegados da Polícia Civil de São Paulo se insurgiram contra uma decisão do Tribunal de Justiça Militar que referendava a competência para que a Polícia Militar fizesse o que lhe faculta o Código de Processo Penal Militar nas apurações de crimes militares. Ganharam uma liminar, mas por enquanto é só liminar. Mas a pergunta que a imprensa não faz é a seguinte: quem apura os crimes cometidos pela Polícia Civil?


(fonte: Estadão)
"Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem,
ressalvada a competência da Uniãoas funções de polícia judiciária
e a apuração de infrações penais, exceto as militares"
(art. 144, §4º da Constituição Federal - grifo nosso)

Olá amigos e amigas do blog!
O tema que vou abordar neste post é um tanto quanto técnico, mas prometo que procurarei ser o mais didático possível.
Talvez a esmagadora maioria de vocês nem saiba do vou tratar, mas repercutiu muito na imprensa escrita e portais de notícias; trata-se da cassação de uma resolução do Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo.
A matéria do Estadão está na íntegra do link acima.
No dia 21 de agosto agora o Tribunal de Justiça Militar (TJM) do Estado de São Paulo (é, ele existe e é Órgão da Justiça Estadual), editou a Resolução 54/2017, buscando definir de vez a competência que os oficiais de Polícia Militar têm no que concerne ao Inquérito Policial Militar. Isso inclusive está previsto no Código de Processo Penal Militar, que é lei federal e está em vigor.
O que chama a atenção não é o debate jurídico, mas a politização da coisa. Dos delegados de polícia esperar distorcer o direito para uma vendeta corporativista, vá lá; mas ver duas figuras de peso de Instituições do Estado falando absurdos, aí é demais. Senão, vejamos.
A matéria é curta, mas encerra as informações necessárias para elaborarmos nosso pensamento.
O dispositivo colocado acima como ementa desse post é o que trata da competência das Polícias Civis dos Estados e do Distrito Federal. Fiz questão de grifar que eles podem fazer tudo em termos de apuração de infrações penais, exceto em duas situações: quando for competência da União, aí quem apura é a Polícia Federal, e as militares, ou seja, quando a esfera de competência for das Forças Armadas ou das Polícias ou Corpos de Bombeiros Militares em caso de crime militar previsto no Código Penal Militar, independentemente de ser tal crime em tempo de paz ou de guerra¹. Não abordarei esse quesito, mas é importante saber que ambos estão contemplados neste dispositivo da Constituição.
Vejam o que um Desembargador colocou em sua fundamentação ao conceder a liminar:
Compete à Polícia Civil a investigação dos crimes dolosos contra a vida praticado por policiais militares contra civis, em época de paz
O nome do Doutor é Antonio José Silveira Paulilo. Longe de mim ensinar direito básico a um desembargador, mas certas coisas são cristalinas. Quando ele faz essa confusão, deliberada ou não, entre apuração das infrações penais e seu julgamento pela justiça ele comete erro crasso. Por quê? Isso tem a ver com a lei federal 9.299/1996, que deslocou o julgamento dos crimes dolosos contra a vida praticados por policiais militares do TJM para o Tribunal do Juri. Ela deu nova redação ao artigo 9º do Código de Processo Penal Militar criando o parágrafo único:
Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum (grifo nosso)
Que se saiba, nenhuma lei pode revogar a Constituição. Então a apuração da infração penal militar será feita pelas Instituições Militares e, findo o inquérito, encaminhado ao juri. Não sei quais motivos encontrou o Seu Paulilo - ou um auxiliar seu (é! Tem gente que faz isso para eles!) - para chegar a esta decisão, mas nas leis vigentes é que não foi.
Já o Procurador Geral de Justiça do Estado de São Paulo, Doutor Gianpaolo Smanio, que será consultado mas já antecipou seu entendimento, diz que a dita Resolução 54 é inconstitucional, vez que "legisla" matéria de lei processual e só a União pode fazê-lo. Não é caso de legislar, pois as leis já existem regulando a matéria, que são o Código Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar, além da Constituição. O que a resolução faz é normatizar o que já está previsto em lei.
E há também um entendimento estranho sobre a abrangência da lei federal 12.830/2013; porém ela trata já em seu artigo 1º que é para regular a apuração penal por parte da Polícia Civil, que tem seus limites no §4º do artigo 144 da Constituição como comentado.
Mas talvez o Seu Smanio não tenha percebido uma gafe tremenda contra sua própria classe, os Promotores de Justiça!
Como disse, a Justiça Militar é integrante do Poder Judiciário - e não como quer fazer parecer crer a matéria do Marcelo Godoy no Estadão - e como tal tem juízes e promotores de justiça, a quem compete, e em especial a estes últimos, fiscalizar todos os atos de Polícia Judiciária Militar. Ao rechaçar in limine (bonita a expressão, não?) a Resolução do TJM, ele põe em suspeição seus colegas e a própria Instituição que representa. Lamentável.
Mas já que estamos a questionar a Polícia investigando seus policiais, por quê a Polícia Civil pode investigar os seus? Por quê a Polícia Militar não pode investigar os dela?
Creio que esta é uma pergunta razoável.
Mas eu vou mais fundo. Com 60.000 homicídios por ano no Brasil, não seria mais sensato os delegados criarem uma fórmula de gestão que permitisse elucidar mais que os 5% dos homicídios, ao invés de ficar com picuinhas corporativistas?
#ficaadica


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¹ Quando falamos que não existe pena de morte no brasil, isso não é uma verdade, pois o Código Penal Militar prevê a pena de morte para os crimes em tempo de guerra.

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